SOBRE AQUILO QUE NUNCA FOI E NUNCA SERÁ
E na hora mais
tardia, quando tudo aqui dentro parecia estável, me atingiu o peito a lembrança
sua e comecei a sentir rachaduras nas parcas estruturas da minha estabilidade de
porcelana.
Não foi violenta a paixão, não me fez cometer loucuras ou sandices
próprias do vil sentimento, mas foi um sentir tão terno, que criou as mais
profundas e fortes raízes, nunca antes vistas. Raízes que se espalharam em
todas as direções, que criaram ligações com tudo o que sou, de modo que
arrancá-las de todo significaria romper em um ponto ou outro, várias partes da
estrutura.
Fiquei olhando o seu rosto nos
desenhos que fiz e foi como se o tivesse visto pela primeira vez. Já faz um
tempo em que foi o tempo da vez primeira, mas foi como se o tempo na verdade
não tivesse passado. Senti o fervilhar dos sentimentos e então tive aquela
impressão de felicidade, já conhecida daqueles que julgam ter experimentado o
então amor a primeira vista.
Não é o mais belo homem que já vi,
tampouco o mais cheio de virtudes, mas tornei-me cativa dos seus olhos, que
ainda hoje são os mais lindos desse mundo e dos quais fiz o paraíso inalcançável
onde sempre quis habitar.
Não foi o acaso a razão de nossos
caminhos se terem encontrado, mas foi a ponte amiga, aquela que vem do vale, a
responsável por me ter conduzido a você. E então o vi, nos mais verdes e limpos
campos, com trajes simples, carregando um sorriso tímido e ao mesmo tempo
convidativo, mas sem necessariamente ter como causa um alguém. Estivera
cavalgando e tal foi a minha surpresa quando percebi que era você o amigo dos
cavalos de quem tanto eu ouvira falar.
Estava no povoado há poucos meses e
nunca tivera atravessado a ponte para, naquele mundo vivo, limpar os pulmões
respirando daqueles bons ares como me aconselharam os mais antigos. Fui naquela
específica ocasião porque só então consegui papel e carvão para desenhar as
plantas presentes nas áreas do pequeno povoado.
Passei muitos minutos observando a
forma como você conduzia o cavalo até você me notar, foi mais que suficiente
para captar os seus detalhes e trejeitos. Tive a impressão de ver em você o que
costumava ver em mim, uma profundidade de pensar que faltava aos outros.
Você me fitou por alguns segundos e
então aproximou-se devagar, meu rosto não era um velho conhecido e mesmo assim
você me saudou com um sorriso, então principiei e disse ser nova naquelas
bandas. Você assentiu parecendo então associar um fato a uma pessoa.
Nesse ponto você desceu do cavalo e
me examinou em uma fração de segundo, uma olhadela neutra, sem interesse ou
indiferença e então observou a maleta que eu carregava, seu rosto pareceu
interrogativo de modo que resolvi dizer que eu trabalhava com um cientista de
plantas e estava ali com a missão de desenhar e coletar os espécimes locais.
Então vi um sorriso que por motivo nenhum parecia satisfeito. Eu carregava
alguns desenhos antigos e então você pediu para vê-los, notei que os olhos
estavam impressionados e isso me trouxe uma sensação de divertimento.
Fiquei contente ao vê-lo tão compenetrado,
não porque me regozijava em ver que o meu trabalho estava sendo apreciado, já
estava habituada a isso, mas porque assim tive tempo de admirar o seu rosto de
perto, notando os contornos, expressões e traços de povos ancestrais.
Você disse que as minhas obras eram
muito fieis em tom elogioso, agradeci com sinceridade e perguntei qual era o
seu ofício. Não pude sufocar a admiração quando você disse ser tabelião, não me
era possível associar aquilo que até o momento sabia a seu respeito com tão nobre
atividade. Então riu-se do meu espanto e disse que as pessoas da vila não
aprovavam o caráter ocioso do seu lazer e que o chamavam de amigo dos cavalos
em tom de troça, pois diziam “prefere esses bichos às lei”. E então notei o
pesar, o vazio profundo que dizia o seu olhar, foi o que vi e não observei no
primeiro momento, mas que agora havia entendido. A tristeza de sentir culpa por
não fazer aquilo que os outros julgam certo, de ter uma vida pautada na dúvida
entre ser livre fazendo o que se gosta ou preso ao conservadorismo para receber
prestígio.
Eu senti você naquele instante e
você me sentiu, percebeu também que em mim existia algo que pudesse refleti-lo.
Os nossos olhares sorriram como cúmplices, partícipes de uma compreensão de
mundo secreta, de uma conspiração particular.
As semanas sucediam, tivemos
encontros em intervalos de dias, mas conseguíamos manter o ritmo de construção
da amizade. Você me mostrou o seu mundo, as leis que eu desconhecia e eu
apresentei a você o meu, as diversas nuances da natureza. Nunca antes a ternura
se tivera arraigado até no campo dos conhecimentos, você era como um livro.
Nada no mundo me provocou mais encanto do que você, a sua voz, suas mãos e a
forma doce de sua explicação, tudo isso era harmonioso, era como se você tivesse
sido projetado.
Eu sentia as nossas almas como
reflexos uma da outra, e embora tivesse ciência da natureza do que passei a
sentir por você, minha mente não era tomada por intenções luxurientas, nem
mesmo quando eu o tinha muito perto. A minha ânsia era sobremaneira mais forte
que o simples desejo do toque, o toque era muito superficial se comparado com o
ideal de união que eu almejava, mente e alma.
Ir para o campo passou a ser a
melhor parte das minhas semanas, nunca era no mesmo lugar, já que eu sempre me
detinha no caminho ao ver um espécime com detalhes diferentes. Dividíamos tudo
o que tínhamos aprendido nas horas de leitura que despendíamos nos dias longe
um do outro. Ensinar e aprender era algo quase religioso nos nossos dias e
chegamos até mesmo a dividir algo que considero das coisas mais íntimas, que é
mostrar as poesias e canções de sua preferência. Tais revelações são como a
entrega de segredos, elas mostram a sua camada mais oculta. Você era um homem
de cultura invejável e eu bebi dela como alguém que acaba de chegar do deserto,
e de todas as manifestações culturais, existe essa canção chamada Fantasia, que
você recitou certa vez. Ela conta a história de um casal que se desfez após uma
trajetória de sonhos e planos, ficando apenas um dos amantes a sofrer, depois
disso a música grita a solidão. Você ficou assobiando a melodia e lembro de ter
lagrimado com a beleza triste dela. Em pouco tempo eu passei a assobiá-la junto
com você. Era como um tributo à tristeza no início, mas depois assobiávamos em
tom de divertimento.
Foram muitos meses de longas
conversas que acabaram por consolidar a nossa relação em amizade, ao menos de sua
parte. Passaram-se os quinze meses de trabalho e eu teria de retornar com os
desenhos para a província do meu empregador. Comuniquei a ida ao meu caro
amigo, que recebeu com ares de compreensão e pesar. Nossa última conversa foi
muito de meu agrado porque não nos permitimos dar espaço a lamentos.
Passei cerca de cinco meses
apresentando os detalhes e informações obtidos durante os estudos, organizando
e catalogando as coletas. Nesse período acabamos nos correspondendo, eu tomei a
iniciativa já que sabia para onde encaminhar a primeira carta.
Tivemos umas poucas conversas e
nelas você sempre dizia para eu retornar. Achava graça do pedido e isso me dava
esperanças com relação ao tão nublado terreno dos seus pensamentos. Eu de fato
retornaria, mas para o povoado vizinho, que aproximadamente uma hora a cavalo de
distância do seu povoado.
Assim que retornei, tratei de
comunicar a você minha chegada, recebemos um ao outro com grande euforia, mas
era visível a atmosfera de mudança. Algo se rompera no nosso vínculo, e esse
algo era de tal forma substancial que uma vez perdido, não havia forma de
recuperar. Os encontros foram então rareando, os últimos já eram como um fardo
e em decorrência disso, muito mais breves. Esse declínio foi cortante, pois a
essa altura eu já sabia que o amava, você já havia percebido e tinha o cuidado
de me mostrar que não era recíproco.
O período que tive você foi o mais
puro e bonito de todos os meus envolvimentos. Eu não senti o seu toque, não
provei os seus lábios, mas pude saber um pouco da sua essência e isso teve um
valor infinitamente maior.
Nossos encontros pararam de
acontecer, não havia mais correspondências e a degradação foi tamanha que um
dia fortuitamente o vi caminhando, acredito que o vi primeiro, então notei que
você me notara, notei também que você apertou o passo e decidi por bem fingir
que não o vi para que você passasse por mim em paz. Devo dizer que isso me fez
sofrer. Senti um misto de repulsa e humilhação, queria saber se eu tivera algum
significado para você. A mim não fazia sentido dividirmos tantas coisas e você
não querer com isso dizer que eu fazia parte da sua vida de uma maneira
especial.
Mais tarde descobri que minha
amizade teve algum valor, mas que você não me amou como mulher porque de fato
não poderia, era aquela profundidade inominável que só com o tempo entendi ser
o peso de esconder a natureza de quem se é, de reprimir um desejo julgado
pecaminoso, desejo esse que se traduz em simplesmente bem querer um homem que é
tão homem quanto você.
Já se passaram três anos desde
aquele precioso dia em que nossas almas se encontraram. E hoje a lembrança foi
mais lancinante porque do meu quarto ouvi, vindo da rua, um rapaz assobiando
Fantasia. A melodia me deixou paralisada, mas fui impelida pela força da
consciência a andar até a janela para me certificar de que não era você. De
fato não era, mas foi como ver você. Tomei rapidamente o meu baú de desenhos e
vi que ainda não havia descartado os retratos tão esmerados que fiz de você nos
dias em que estivera no campo, sozinha.
Dos meus olhos desceram uma discreta
cascata, foi como um choro soluçado da alma que só poderia ter vazão nessa expressão
física da dor. Percebi que continuo desejando você tão solidamente quanto antes
e que sempre, sempre vou desejar. A beleza desse sentimento é a natureza de sua
impossibilidade, um amor puro e livre da prisão da posse.
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