INSTROSPECÇÃO AFETADA


É cedo, não são nem seis da manhã, fecho a porta e deixo a casa para trás. Inspiro, sinto o cheiro do mundo, dou o primeiro passo e o peso dos meus pés levanta a poeira da rua sem asfalto, ficando nela um pouco do que há em mim, o formado dos meus pés, e em mim um pouco dela, uma camada amarelada de terra fina, meus olhos sorriem, o mundo é tão belo na superfície. Sigo o meu caminho, o vento desgrenha os meus cabelos, mas que importância tem? Não há ninguém na rua para observar. Todos dormem debaixo do céu ainda escuro, prontos para acordar-se com os primeiros raios que penetram nas frestas da janelas.
A lua e as estrelas, todas minhas amigas nesse glorioso momento de introspecção, acompanham-me com o olhar e apreciam a minha sôfrega caminhada, carregando pesos enormes, sendo a bolsa nas costas o menor deles. O coração por pouco não arrebenta as minhas entranhas cedendo à gravidade.
Pé ante pé chego ao ponto de ônibus, o primeiro passa só as seis. Deixo-me cair sobre o banco frio e grudento de suor velho a observar um redemoinho de poeira e lixo que se desfaz em um segundo, dando lugar a um silêncio ensurdecedor interrompido apenas pelos barulhos dos insetos.
Jogo a minha cabeça para trás, contemplo o mundo e toda a sua arquitetura, me pergunto se é ele tão vasto ou se vasta mesmo é a minha ignorância. Estendo um dedo para tocar no céu fazendo parecer aquela pintura de Michelangelo, A criação de Adão, acho graça e deixo a mão cair sobre a coxa.
Passa um senhor idoso de bicicleta, com enxada e pá na garupa, meu coração aperta. Deve trabalhar duro e ganhar pouco. Começo a sentir o ódio de todos os dias, o mundo é nefasto porque estamos nele, ele passa muito bem sem nós, humanos, a espécie mais imunda da criação.
Meus olhos brilham de lágrimas negras que escorrem pelo meu rosto até não mais poder, sem soluços, sem mover um músculo, então percebo que quem chora é a minha alma, desejosa de se desprender do corpo que ainda a mantém aqui. Limpo do rosto as lágrimas alheias.
Vem vindo o ônibus, faço o sinal e entro nele, dou bom dia ao cobrador e finjo que não percebo as mazelas do mundo como os demais e assisto contruir-se, diante de mim, a máscara invisível de alegria e cordialidade que cobre as fissuras deixadas por uma mente que sente dor.

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