CRIEI EXPECTATIVAS ERRADAS A RESPEITO DE O DIÁRIO DE ANNE FRANK


Tenho especial interesse nos livros que são considerados clássicos. Não sei exatamente se O diário de Anne Frank é um deles, mas acredito fortemente que sim dado o seu valor histórico. Algo, no entanto, me impedia de inserir esse livro imediatamente nas minhas listas de leitura ao longo desses anos como leitora ávida, até hoje não saberia dizer o porquê, mas suspeito que a razão esteve ligada à impressão errada que o título e o contexto do livro me passaram. Cri que esse diário seria só mais um em seu modus operandi e o pior, escrito por uma adolescente que, na minha cabeça, devia sem comum, sem muito encanto ou inteligência. Nunca fiquei tão contente em estar enganada.
            O diário inicia com uma recapitulação da vida de Anne antes da guerra. Até aí nada demais. Então comecei a ser envolvida pela personalidade altiva e perspicaz da narradora. Falante, inteligente, respondona e namoradeira. Eu esperava tudo, menos isso.
            Após a contextualização pré-guerra, fui conduzida ao anexo secreto e seus moradores. Assisti ao convívio de duas famílias mais um senhor de meia idade. Junto com Anne pude conhecer cada pessoa, suas qualidades, defeitos e maneirismos, seus conflitos mútuos decorrentes dos choques de costumes e diferentes opiniões.
            Por vezes eu me irritei com Anne, achei que era muito mimada e sem educação, mas quando ela expôs seu interior no diário,  fui capaz, em alguns momentos, de ficar do lado dela. A Anne malcriada e respondona era uma máscara que ela vestia diariamente a fim de suportar a vida reclusa de pária. Mas diante do diário, Anne sucumbia e a máscara se despedaçava.
            Foi duro acompanhar o amadurecimento forçado da narradora, ao tempo que foi interessante. Em pouco mais de um ano de relatos, eu senti a mudança de discurso. Nos primeiros meses li uma sucessão de reclamações, acessos de raiva e acusações; passado um ano, percebi o nascimento da empatia, conheci uma nova Anne, aquela que sabia ver o lado do outro, que fazia julgamentos críticos sobre o próprio comportamento, que já sabia hesitar antes de proferir sentenças perigosas.
            Anne como muitos jovens, se sentia só, mas como poucos deles, refletia sobre a própria solidão.
            “Aparentemente, nada me falta. Mas acontece sempre o mesmo com todos os meus amigos: gracejos, brincadeiras, nada mais. Jamais consigo falar de algo que não seja a rotina de sempre. O problema é que não conseguimos nos aproximar uns dos outros. Talvez me falte autoconfiança; seja como for, o fato é esse, e não consigo mudá-lo.”
            E apesar dos percalços que a solidão lhe trouxera, ela não desanimava e era capaz de pensar no futuro, de olhar para além das incertezas.
            “Ontem terminei de ler O assalto. É muito divertido, mas não chega aos pés de Joop ter Heul. Na minha opinião, Cissy van Marxveldt é uma escritora de primeira, e já resolvi que vou dar seus livros para meus filhos lerem.”
            Em um mundo recluso, onde por vezes não se podia falar por medo, é difícil encontrar escape e felicidade e, mesmo assim, Anne aprendeu a saborear a beleza do mundo como nunca antes e nessa fresta de esperança, encontrou um pouco de felicidade.
            “Acredito firmemente que a natureza traz alívio a todas as aflições.”
            Anne era sonhadora, visionária, parecia não pertencer ao seu tempo. Desejava ser uma jornalista ou escritora, mas o que ela queria mesmo era deixar um legado imortal.
            “Quero continuar a viver, mesmo depois de minha morte!”
            Sem imaginar que um dia seria lida, Anne deixou muitos corações apertados com declarações que para ela, não tinham maldade mas que provavelmente abriu muitos olhos para as crueldades do mundo.
            “Kitty, nós literalmente arrancamos as palavras da boca de Miep, juntamo-nos à volta dela como se nunca na vida tivéssemos ouvido falar em comida deliciosa ou gente elegante.”
            Anne Frank não teve a vida que queria, não realizou o sonho de ser jornalista mas deixou um dos maiores legados da literatura. Ela forneceu ao mundo um relato mordaz de um dos piores horrores da história. O sofrimento, o medo e o amadurecimento de Anne mostraram ao mundo aquilo que não pode ser repetido, a guerra, por quaisquer que sejam as razões.
            O relato partido da perspectiva de uma adolescente escondida tem valor importante, porque dá voz a uma juventude que, por muito tempo, foi censurada.

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